terça-feira, 31 de janeiro de 2017

gosto de ti








mas a verdade é que não cabes na minha vida, é uma questão de logística.
acordo a meio da noite e a pele chama por ti, com dor. tento preencher a falta do teu toque, percorrendo o corpo com as minhas mãos, fingindo que são tuas - primeiro as pernas, depois os pés, numa tentativa de acalmar o latejar que sinto do peso dos dias, da vida.

canelas canelas que o teu pai é delas, diziam os miúdos, enquanto, no tempo da escola primária, atiravam pedras às pernas das raparigas. passaram-se mais de quarenta anos e ainda as pernas se lembram do grito. da urgência da fuga.
quanto tempo durará em mim a ausência de ti, enquanto o inverno chove?









segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

dualidade








Enquanto a alma estivesse com ele, o corpo aninhava-se, muda e surdamente à espera.
Todos os dias ensaiava "estou presa a ti como um insecto numa teia de aranha, preciso prosseguir e não consigo". Depois ficava quieta. Se o perdesse retalhava a alma. A quem entregaria um corpo sem alma...e para que lhe servia uma pele sem toque...
Trazia o corpo revestido de palavras , marcas dele tatuadas na pele, na expressão do olhar ausente, nas mãos vazias de mãos.









domingo, 29 de janeiro de 2017

só ele não sabia






ele não percebia porque ela continuava ali, como quem espera, sabendo que não chegaria jamais. mas enganava-se quem assim pensava. para ela,  ele era como o brilho das estrelas que já não existiam, o recolher das ondas do mar, a água que deslizava pelo corpo, sem se deter. fazia-lhe bem, não ficando.

ela vivia, aérea, estava não estando, falava calando, acordava dormindo, ria chorando, viajava ficando. ele era só mais uma incongruência.






sábado, 28 de janeiro de 2017

do que se ouve contar









então só se lembrava de que ele fazia acontecer, como que por magia, a cada dificuldade, a cada receio, a cada bloqueio. quando ele estava perto, tudo se desenvencilhava.
também parecia preocupar-se com os seus sonhos, e incentivava, mostrava-lhe caminhos. a ela, parecia-lhe que podiam caminhar juntos naquela forma simples de vida que ela gostava, e, quem sabe, visitar a escócia. depois, com os dias, ele retomou a sua arrogância, exigiu tempo, fez comparações, apontou-lhe falhas. ela, sentiu saudades dos serões solitários, da desobrigação, da leveza.

nunca chegaram a lanchar num banco de jardim nem a caminhar na praia.










quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

apenas








a noite cai, eu vejo-a cair.

a fogueira apaga-se e não carrego com lenha.
o televisor está alto demais e não baixo o som.
está frio e não me agasalho.
é hora de jantar e não faço a refeição.
a roupa suja acumula.
as contas estão por pagar.
à minha mão falta outra mão.
tu partes e eu vejo-te partir.

nisto tudo só me incomoda realmente o som alto demais da televisão.










segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

só por hoje










estou cansada, meu amor. não digas nada, simplesmente deixa-me acreditar. só por hoje.
só por hoje.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

frio










as minhas mãos só aquecem nas tuas
tudo o mais é gelo










quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Tu sais je vais t´aimer

recolher








silenciava o coração para que ele encontrasse a alma









terça-feira, 17 de janeiro de 2017

até tu









para ela tudo se tornou possível, quando ele lhe mostrou todas as impossibilidades






domingo, 15 de janeiro de 2017

esvaneces







estava azul, o céu. de seguida alaranjou. depois escureceu. agora enegreceu.
assim eu te tenho em mim.
ciclicamente.









sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

nua









encaracolo-me. 
preencho todos os espaços do meu corpo para que não haja um vazio onde me possas faltar.
as mãos que me tocam as costas, são as minhas.
os joelhos de encontro ao meu peito, são os meus.
só a minha pele está só.









terça-feira, 10 de janeiro de 2017


















frio






as minhas mãos gelam na tua ausência, presente








domingo, 8 de janeiro de 2017

enquanto vais










nunca estiveram tão próximos como no momento em que se afastaram.









sábado, 7 de janeiro de 2017

obrigada








vejo escancarado no retrovisor do carro a inutilidade de querer-te.
com o telemóvel no colo, percorro ruas que conheço por me perder sempre nelas, sempre nas mesmas, sempre às voltas. como na vida. 
recomendas-me um cuidado oco enquanto circundo na rotunda até perceber o caminho a tomar.
chego a casa cansada do mal-estar, do desnorteio, do medo e da inutilidade de tudo isso, de tudo.









domingo, 1 de janeiro de 2017

o casaco









visto um casaco quente, cor de meia-de-leite. esta cor fica-me mal, mas a lã é grossa e rente ao corpo, aquece os desencontros que me gelam.
olho ao longe as nuvens que prometem que se cumpram as previsões de chuva para amanhã, e enrosco-me no sofá.

é o primeiro dia do ano e tu nunca deixarás de estar longe.

sinto-me tentada a desistir do esforço de me conciliar com a outra de mim, aquela que se comporta, aquela que se ri, aquela que se adequa, aquela que é generosa. afinal de contas é domingo, é feriado, estou só, e posso ser fraca. 
a verdade é que está frio, o tempo escoa, o corpo envelhece, o desejo some-se, e tudo o que se pode desejar é um casaco de lã, cor de meia-de-leite, rente ao corpo sem voz.